VESTÍGIOS MEMORIAIS

Definição: o conceito de vestígios, ou rastros deixados pela memória, remete à presença de uma ausência, ou seja, à possibilidade de reconstituir fragmentos de memória a partir de rastros, ruínas, detalhes esquecidos. Em francês, trace (traços, marcas, vestígios), foi conceituado primeiramente por Jacques Derrida como sendo a ausência de uma presença: seria o simulacro de uma presença que se desloca. Em Le monolinguisme de l´autre (1996), Derrida, trabalhando com a situação crucial dos colonizados de terem que se exprimir na língua do outro (colonizador), volta a refletir sobre a situação do exilado que rompe com sua tradição, se desenraiza, torna-se em parte amnésico, o que desencadeia “a pulsão genealógica, o desejo do idioma, o movimento compulsivo em direção à anamnese, o amor destrutivo pelo proibido” (1996, p. 116).


Histórico: Trace corresponde a marcas deixadas pela passagem de um ser ou objeto, pista, resto, vestígio. Segundo J. Derrida “não existe presente que não seja constituído sem referência a um outro tempo, a um outro presente” (apud Wolfreys, 2007, p. 19).  Wolfreys relembra as teses do filósofo francófono, que via a literatura “como o receptáculo dos resíduos e traduções daqueles discursos e práticas do passado que deixam suas marcas de fantasma em nós mesmos, no que chamamos nosso presente, na identidade de hoje ou onde alguém está, na (essa coisa estranha chamada) literatura” (2007, p. 210).  Nessa medida, toda escritura é uma casa assombrada, devido a intercorrências tais como citações, alusões, menções, recordações, referências, etc. Paul Ricoeur (2007) também faz alusão à marca deixada por um timbre em cima de cera quente: “se a marca é presente, o timbre já não o é”. Usa esta metáfora para falar de imagens (lembranças) que se apresentam como trace (vestígios, marcas), signos da coisa ausente (RICOEUR, 2007, p.16).  Nessa mesma linha, Édouard Glissant retoma a metáfora da trace, valorizando-a no sentido de afirmar que “la pensée de la trace est celle qui s´oppose aujourd´hui le plus valablement à la fausse universalité des pensées de système” (GLISSANT, 1995, p. 15). Utiliza essa imagem quando descreve o migrante nu (escravo) trazido à força da África e obrigado a aderir à cultura dos senhores, colocando a questão: o que vai se passar com este migrante? “Ele  recompõe por traces uma língua e as artes que poderíamos dizer válidas para todos”. O exemplo que o autor apresenta é o seguinte: a conservação por determinadas comunidades que chegaram ao Novo Mundo de tradições, cantos, lendas, cerimônias de enterro, festas, etc, não foi possível para o deportado africano, que chegou em condições muito precárias e na condição de propriedade do senhor branco.

Comentário: a reconstituição memorial a partir dos vestígios (traces) faz emergir elementos imprevisíveis: a partir de vestígios conservados pela oralidade os escravos, submetidos à assimilação forçada,  conseguiram reconstituir, de um lado, línguas crioulas com base em vestígios das línguas africanas e, de outro, formas de arte como o jazz, reconstituído nas Américas a partir de rastros de ritmos africanos, sendo hoje considerado música de todos e não apenas da comunidade afro-americana (cf. GLISSANT, 1995, p. 15).

Autoria: Zilá Bernd

 

Referências

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2008. (Estudos 16.)

______. Le monolinguisme de l’autre. Paris, Galillé, 1996.

GINZBURG, Carlo.  O fio e os rastros; verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

GLISSANT, Édouard. Introduction à une Poétique du Divers. Montreal: Presses de l´université de Montreal, 1995.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007. Trad. Alain François (et alii).

WOLFREYS, Julian. Compreender Derrida.  Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

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