MEMÓRIA E LITERATURA

Definição: a relação entre memória e literatura é algo que se apresenta como praticamente evidente, na medida em que toda reconstrução do passado implica na organização de lembranças tomadas, seja de vivências pessoais e coletivas, seja do próprio imaginário, de sorte que a forma como se estrutura o pensamento literário, ora avaliza o imaginário, ora se opõe ao esquecimento, operando como uma espécie de resistência. Contar uma história significa elaborá-la subjetivamente, utilizando a linguagem como ferramenta e a memória como fonte, na expectativa de obter um vínculo com o leitor. O processo da escrita, neste caso, atuará como que definindo diferentes ambientes literários que podem variar intensamente conforme tempo, lugar e público, em matizes contrastantes que, todavia, têm em comum a reconstrução de vivências pelo autor com vistas a um sujeito leitor que as irá vivenciar. Seja um romance, um conto ou mesmo uma notícia de jornal, vamos sempre poder identificar essa relação de forma, que se dá entre o autor e seu leitor, pela via da linguagem, contra um fundo comum, tecido de elementos de memória que permeiam o imaginário, numa trama que desafia o intérprete a penetrar personagens e ambientes articulados segundo estilos e escolas.


Histórico: a literatura é fonte de pesquisa histórica das mais acreditadas na busca de relatos pertinentes a hábitos, costumes e crenças existentes em dada sociedade. O próprio conceito de memória coletiva (HALBWACHS, 1991) encontra na literatura um reforço, na medida em que esta contribui para homogeneizar as recordações de determinado grupo social. Em La mémoire collective (1950), esse autor coloca que:

quanto mais um romance ou uma peça teatral são colocados por seu autor em um período distante de nós de muitos séculos, isso é frequentemente um artifício para afastar o quadro dos eventos atuais e melhor fazer sentir a que ponto o jogo dos sentimentos é independente dos acontecimentos históricos (HALBWACHS, 1950, p. 52).

Ele deixa ainda um testemunho pessoal, quando conta que, estando pela primeira vez em Londres, diante de lugares históricos, lembrou-se imediatamente de Dickens, que lera na infância e que com ele parecia caminhar então.

Outros homens têm essas lembranças em comum comigo, ― acrescenta. Bem mais, eles me ajudam a me lembrar delas: para melhor lembrar-me, eu me volto para eles, eu adoto momentaneamente seu ponto de vista, eu entro em seu grupo, logo, continuo a fazer parte, pois sofro o impulso disso e encontro em mim muitas idéias e modos de pensar que não aprendi sozinho, e pelo quais eu permaneço em contato com eles (HALBWACHS, 1950, p. 8).

Comentário: Assim como o historiador, o autor também interpreta e analisa o passado ficcionalmente, com vistas ao futuro, numa constante atualização do presente. A grande diferença, contudo, situa-se no compromisso com a verossimilhança ― o poder de “fazer crer” que daí resulta (PESAVENTO, 2005) ― que ao primeiro se impõe, mas que o segundo pode dispensar-se de ostentar quando liberta sua imaginação. Relações entre memória e literatura podem ser constatadas facilmente através de diálogos que a segunda estabelece com diversas formas de saber, ainda que não os sistematize, trabalhando com método ou estabelecendo barreiras claras entre o real e a ficção.

Autoria: Maristela Bleggi Tomasini

 

Referências

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

HALBWACHS, Maurice. Fragmentos de la Memoria Colectiva. Seleção e tradução. Miguel Angel Aguilar D. (texto em espanhol). Universidad Autónoma Meropolitana Iztapalapa Licenciatura em Psicologia Social. Publicado originalmente em Revista de Cultura Psicológica, Año 1, Número 1, México, UNAM- Faculdade de psicologia, 1991. Disponível em: <http://ddd.uab.es/pub/athdig/15788946n2a5.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2011.

______. (1950). La mémoire collective, edição eletrônica. Disponível em: <http://classiques.uqac.ca/classiques/Halbwachs_maurice/memoire_collective/memoire_collective.html>. Acesso em: 25 jun. 2011.

Still quiet here.sas

Deixa um comentário